quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

 

Cabelos crespos





Quando os cabelos crespos viram um trauma.



"Eu tenho uma irmã mais velha do que eu

os seus cabelos não eram tão crespos como os meus, 

assim o castigo acabou recaindo sobre mim."



Nascer com cabelos crespos foi um azar.

Meu nome é Claudia e eu venho de uma misturas de raças, onde a minha mãe era descendente de índios e o meu pai era descendente de negros e com predominância genética, embora eu tenha uma irmã mais velha do que eu, os seus cabelos não são tão crespos como os meus, assim o castigo acabou recaindo sobre mim. Falo isso por que, quando eu era ainda muito pequena e começando a tomar consciência de “ser”, lembro-me das reclamações da minha mãe contra os meus cabelos crespos.



Um fato que eu até hoje não entendi muito bem era o da minha mãe não aceitar os meus cabelos e todas as vezes que ela brigava comigo, ela os atacava com reclamações e até, antes mesmo, que eu chegasse na minha adolescência ela xingava de “cabelos de pixuim”. Antes de me tornar adulta ela já os xingava de “pentelho de doido” (quando estava bem brava comigo). Nisso antes que eu iniciasse na minha adolescência eu já tinha desenvolvido o trauma de ter “cabelos crespos” que ao longo dessa história vou explicando para vocês e que até os dias de hoje eu tenho muita dificuldade de aceitar-los.



Deturpação da auto-imagem.

Ainda na fase entre 6 e 8 anos eu, é claro, não me incomodava com cabelos, afinal crianças dessa idade, ainda mais na década de 70 não tinham vaidades e cabelo era a última coisa que importava, mas a minha mãe se incomodada com eles e muito, as reclamações eram frequentes e pelo motivo de todas as vezes que ela precisava sair comigo, ela teria de se programar uma hora mais cedo, porque os meu cabelos precisavam de tempo e paciência, que a minha mãe não tinha, para serem arrumados e por esse motivo ela os batizou de “empata viajem”. Esse era um termo que eu escutava bastante nas conversas entre ela e suas conhecidas (o meu cabelos sempre rolava nessas conversas). Um dia uma vizinhas opinou para minha mãe que fazer “cocózinhos” chamados assim na época,  amenizavam o aspecto de “cabelo ruim” e até que eles tiraram um pouco todo aquele encrespado com bastante óleo de côco, enfim ela conseguia algum resultado, desde quando eles não pegasse chuva, só que, eu teria que ficar com esses cocozinhos na cabeça o tempo todo e só desmanchar se fosse sair. Um certo dia, ela irritatada, me obrigou a ir com aqueles pequenos cocós para a escola, e eu não queria sair daquele jeito, os moleques da escola iriam rir, foi aí que ela teve a idéia de cobrir a minha cabeça com um pano. Eu cheguei na escola e todos não olhavam para mim, olhavam para o pano que estava na minha cabeça, as minhas coleguinhas começaram a perguntar porque eu estava com aquele pano na cabeça, uma delas disse “sua  mãe fez cocózinho”?( tinha os formato dos cocós no pano). Eu tinha uns 8 anos, parecendo minha avô usando lenço nos cabelos, foi um dia que eu nunca esqueci e não via a hora de voltar para casa.



Porque eu?

Eu tinha uma vizinha da mesma idade, ela ia quase todos os dias me chamar logo de manhã cedo para brincar, ela era bem branquinha e tinha cabelos castanhos claros enormes todo cacheado, lindos. Uma vez eu ouvi a minha mãe elogiando os cabelos da filha da vizinha para uma conhecida dela, mas o crucial mesmo para mim foi quando um dia ela comparou os meus cabelos com os cabelos da filha da vizinha e ainda disse: ‘Se os seus cabelos fossem iguais aos dela”



Afirmação do trauma dos cabelos "ruins"

Ainda não bastante os meus dois irmão um pouco mais velhos do que eu, emchiam o meu saco, mangando dos meus cabelos. Na década de 80 era exibido na tv bandeirantes, uma novela de época chamada a Filha do silêncio e nessa novela havia um personagem que era de uma escrava louca, que vivia aprisionada e seus cabelos eram crespos e longos, ela se chamava Zana e logo esses dois irmãos passaram a não me chamar mais pelo meu nome, mas somente Zana e isso durou até a novela acabar; vindo assim só reforçar os alicerces de uma prisão psicológica.



Início das químicas

Quando eu tinha nove anos a minha mãe foi aconselhada por conhecidas a passar Hené nos meus cabelos, Hené era um alisante barato para cabelos e de baixa qualidade, mas utilizado por mulheres que não tinham dinheiro para comprar algo melhor (eu acho que não tinha nada melhor), era um produto químico preto que minha mãe não teve sucesso em alisar os fios. Depois uma dessas conhecidas que tinha um salão de “ponta de esquina” convenceu a minha mãe de que ela iria deixar os meus cabelos lisos à base de alisante.


 Hené década de 70



Aquele só foi o início do vício de usar químicas para esconder uma coisa que a partir da minha adolecência eu comecei a abominar; “os cabelos crespos”. Eu passei a ver o que eu tinha na cabeça não como cabelos, mas como um defeito equivalente a um defeito físico, isso mesmo que vocês ouviram, o trauma do cabelo crespo já havia se enraizado.



 Refén de alisamentos para me auto-afirmar.

O tempo foi passando e eu fui ficando cada vez mais tímida, acanhada e viciada em alisamento, porque eu achava que a beleza de uma mulher estava nos cabelos e os cabelos ideais, infelizmente eu não tinha. Eu não queria que ninguém percebesse que eu tinha cabelos crespos, passei a não querer sair de casa se o cabelos não estivessem alisados, cheguei até mesmo a perder dias de aula na escola por causa dos cabelos quando estavam horríveis, afinal minha mãe era pobre e eu não tinha dinheiro para comprar alisante frequentemente e isso foi ficando cada vez mais grave. Eu achava que eu nunca iria arrumar namorado, afinal qual era o garoto que iria se interessar por uma garota de cabelos ditos “ruim”, se eu achava horrível, imagine eles.



Lembro-me de uma vez eu ter alisado e não ficou liso o bastante e em menos de uma semana ter alisado novamente, para minha depressão eu tive uma queda de cabelo, lembro-me de 3 falhas horrorosas na cabeça.



Eu alisava e usava os famosos bobis, pois os alisantes ressecavam, além de mudar a cor dos cabelos, os bobis moldavam os cachos e dava um efeito melhorado.



Baixa-estima.

Aos 16 anos eu me achava inferior as outras meninas que tinham cabelos longos, me achava feia, alta estima nenhuma. Sempre gostei de rapazes bonitos, mas nunca paquerei nenhum deles, porque como se diz “eu me enxegava no espelho”. Os anos foram passando e boa parte desses anos eu não tinha em parte uma identidade e tudo isso passou despercebido.



Há uma questão aqui que eu preciso relatar que é polêmico, mas é necessário contar: eu nunca quis me relacionar com rapazes de cabelos crespos, imagine vocês se cabelos crespos era uma coisa que eu achava horrível em mim, será que eu iria querer alguém com o mesmo tipo de cabelo que eu ou seja, o mesmo “defeito físico”.



Tomada de consciência

Tudo aquilo se passou a nível inconsciente que só depois de muitos anos eu passei a me concientizar que aquelas opiniões todas não eram minhas, eu nunca tive tempo e nem oportunidade para me auto avaliar, fizeram isso por mim na infância. Todas as vezes que eu me olhava no espelho e me julgava não ter beleza facial era porque eu não tinha uma linda cabeleleira lisa do jeito que a minha mãe queria, minha mãe sonhava em ter uma filha, mas com cabelos como os dela e infelizmente ela teve o diagnóstico de uma filha de cabelos rebeldes, os chamados cabelos ruins, o trauma dela passou a ser o meu. Eu sofri muito, foi uma dor na alma pela falta de aceitação interna.



Tentativa de encontrar a minha identidade

Hoje aos 48 anos, eu ainda os olho no espelho e escuto a voz da minha mãe os chamando de pixuim. Gastei muito dinheiro e principalmente tempo para esconder meus cabelos ruins, durante anos embaixo de alisantes e progressivas, várias cicatrizes no couro cabeludo e muita enégia jogada fora até que chegou um ponto que eu não estou suportando mais esconder algo que não pode ser escondido. Hoje estou mais velha, as ideias mudaram, a personalidade, os sonhos, os gostos e cabelo está deixando de ser importante.



Auto reconhecimento

Eu passei boa parte da minha vida dormindo, só executando o comando inconsciente de escondê-los. Meu filho e meu marido me pedem para parar com essa bobagem de alisa-los, que eu deveria mostrar o que realmente eu tenho de bonito, que não é ele alisado, aceitar os meus cabelos afro que é a minha verdadeira característica, é o que me identifica e faz parte da minha personalidade, mas eu confesso que é dificil e que deve ser feito aos pouquinhos, não pode ser de uma vez só, afinal foram anos de repressão, aprisionada à ideia de que os lisos são o belo.



Eu não tive tempo de perguntar para a minha mãe o porque que ela se reveláva tão mau-humorada em relação ao meus cabelos e o que aquilo representava para ela. Infelizmente ela morreu de câncer quando eu tinha 25 anos. Ela gastava as economias dela pagando para pessoas alisar os meus cabelos que só incomodavam a ela. Eu nunca entendi o porquê. Cabelos jamais significariam alguma coisa para uma criança de 6 anos a não ser que a idéia fosse implantada por sugestão.



Eu tive ao longo desses anos mudanças do meu estado humor, depressão, crises de choro, isolamento, revolta e para lidar com isso sem saber o que eram esses sentimentos foi muito difícil. Eu comecei a ler artigos sobre onde está a felicidade e isso desencadeou uma série de outras buscas na internet como meditaçao, espiritualidade, como funciona o pensamento, como uma criança desenvolve a sua personalidade, etc… era algo dentro de mim gritando para ser libertado. Foi uma jornada interna, porque a dor na alma foi grande. Isto ainda não acabou há ainda muita coisa que eu preciso descobrir para a minha auto compreensão.



Eu não sou a única com este trauma com certeza, pois os cabelos crespos não são tidos como arrumados, quando se vai à um evento, o ideal é esticar muito os cabelos e isso significa “arrumado”.



Se algum psicólogo ler este artigo e desejar comentar, eu agradeceria muito. Penso que seria de grande ajuda para muitas mulheres de cabelos crespos.



Eu quero deixar um recado aqui para as mães e até mesmo para os pais:

Vejam quais são os selos que vocês estão colocando nas suas crianças, não pensem que elas não escutam e não absorvem, até mesmo, o que pode ser interpretado pelos pais como uma bobagem, para uma criança não é bobagem, é sério, ela escuta, absorve e anos depois executa exatamente como uma ordem, mas a nível inconsciente. Eu só vim me dar conta que era um trauma anos depois, um dia em que o meu marido disse ; Você perde tempo demais com o seus cabelos, você tem que aproveitar o dia, pois ele é curto”. Aquilo começou a me despertar, eu deixava de fazer coisas importantes na minha vida para dedicar uma quantidade de tempo enorme e de dinheiro nos cabelos.



Eu gostaria de saber se esse conteúdo chegou até você, se você tem uma história parecida com a minha ou se você conhece alguém que já passou por algo desse tipo. Gostaria de compartilhar experiências com outras mulheres que tiveram ou ainda tem esse trauma psicológico em relação aos cabelos Afro.



Também de fazer um pedido aqui; eu gostaria que vocês fizessem seus cometários à respito desse relato, qualquer comentário sano, não importa, mas façam com respeito à memória da minha mãe, ela tinha lá os problemas psicológicos delas, assim como todos nós temos. Eu só relatei um fato, mas não é e nunca será por isso que eu deixei de AMAR a minha mãe, umas das pessoas que eu mais amei e cuidei no mundo.

Eu ja à perdoei e eu tenho certeza que se ela soubesse que aquilo que ela falava de negativo me prejudicaria, ela não o teria feito, pois de resto ela cuidou de mim muito bem.






                                               Eu aos 12 anos de idade e a minha mãe em 1985. 





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